Criadores ou clicadores? Como educar os jovens para a tecnologia

No Dia do Professor, convidamos o professor de sociologia Henrique Neto para falar sobre os impactos e os desafios de educar para a tecnologia

No Dia do Professor, convidamos o professor de sociologia Henrique Neto para falar sobre os impactos e os desafios de educar para a tecnologia

Lidar com as constantes mudanças e inovações tecnológicas da era digital é um desafio para todos nós. Para educadores, que têm como propósito preparar as crianças e os adolescentes de hoje para o futuro, essas novidades podem ser ainda mais desafiadoras.

Se antes os professores tinham a atenção (quase) total dos alunos, hoje já dividem a atenção com celulares em sala de aula. E podem virar o jogo se transformarem os aparelhos em uma ferramenta de ensino, defende o professor Henrique Neto, que dá aulas de Sociologia no Instituto Federal do Paraná (IFPR-campus Ivaiporã).

Um dos maiores desafios da educação é saber usá-la como aliada em sala de aula; Henrique Neto, professor de Sociologia, mostra alguns caminhos para isso.
Um dos maiores desafios da educação é saber usá-la como aliada em sala de aula; Henrique Neto, professor de Sociologia, mostra alguns caminhos para isso.

“A tecnologia já está em sala de aula. Você vai proibir os alunos de usar? Ao proibir o uso, estou bloqueando uma linguagem contemporânea, atual, que os alunos estão vivendo agora. Proibindo, vou cortar um meio de comunicação com eles, o que dificulta trocas e diálogos”, diz ele em entrevista ao iFood News.

Henrique acredita que, apesar de difícil, a tarefa de incluir a tecnologia nas salas de aula é necessária, assim como ensinar os estudantes sobre o seu uso para que, no futuro, eles se tornem criadores, e não apenas clicadores. A seguir, ele conta como vem colocando isso em prática e, ao mesmo tempo, refletindo sobre o papel das ferramentas digitais na sala de aula. 

iFN – Como você entendeu a necessidade de abordar tecnologia e contexto digital em sala de aula?

Henrique – Para lecionar, é preciso ter sensibilidade, e isso exige que a gente fique atento a alguns sinais. Um que eu comecei a observar foi o “pedir para tirar foto do quadro”. Se pararmos para pensar, até que faz sentido tirar foto, o quadro já está preenchido. 

Sei que o processo de escrita ajuda a fixar, mas às vezes os alunos querem fazer as anotações no tempo deles, querem prestar mais atenção no que eu estou falando do que em copiar. Com isso, comecei a perceber que daria para usar, de alguma forma, essas tecnologias para potencializar o ensino e a aprendizagem

Muitos professores pensam que essas tecnologias estão invadindo a sala de aula. Mas foi a partir disso, uma certa “invasão” da tecnologia, que percebi que tinha que ressignificar essa situação e usar a meu favor como professor em vez de atrapalhar a aula e o aprendizado.

iFN – Como você acha que o ensino deve ser abordado no contexto digital?

Henrique – Na prática. A tecnologia já está em sala de aula. Você vai proibir os alunos de usar? Ao proibir o uso, estou bloqueando uma linguagem contemporânea, atual, que os alunos estão vivendo agora. Proibindo, vou cortar um meio de comunicação com eles, o que dificulta trocas e diálogos. 

No IFPR, temos uma internet muito boa, o WiFi é aberto, então podemos trabalhar com pesquisa em sala de aula. Ensino a pesquisar o caminho, porque eles já fazem pesquisa, mas vão no primeiro resultado que aparece no Google, que nem sempre é o melhor.

Minha trajetória usando a tecnologia como ferramenta em sala de aula começou com podcasts, que eram desenvolvidos com os alunos. Eu os ensinava a editar os áudios de maneira básica, mas eles também corriam atrás de aplicativos para editar e eu os ensinava a fazer o roteiro. Depois, passei a explorar os vídeos do YouTube, também feitos com os alunos, que aprendiam, além do processo de criação, o conteúdo das aulas, que era transformado em vídeo.

Para usar a tecnologia nas aulas, os professores têm que estar abertos e se permitir aprender com os alunos. Observar o que estão fazendo e trazer para a realidade do conteúdo. Tentar, de alguma forma, fazer com que eles pensem sobre o uso dos aparelhos digitais. Não precisamos reinventar a roda: os alunos já usam a tecnologia, e melhor que a gente, mas não pensam sobre o uso. 

iFN – E como esse tipo de ensino se encaixa na educação pública?

Henrique – Eu falo de uma realidade muito específica, que são os Institutos Federais, em que temos uma infraestrutura diferente, mais recursos. No cenário nacional, temos alguns problemas: temos zonas mais urbanizadas e outras em que até o alcance da energia elétrica é limitado, imagina o sinal de internet. 

Mesmo que os alunos não tenham acesso à tecnologia, gosto de pensar na questão da linguagem: a tecnologia não é só um instrumento, é uma maneira de intervir na realidade. 

Um exemplo de como podemos ensinar para a tecnologia sem usar tecnologia é trazer um cuidado maior na interpretação de texto, por exemplo. 

Parece básico, mas, se tivéssemos dominado esse princípio, evitaríamos alguns problemas, como as fake news. A gente consegue pegar uma notícia falsa, imprimir e analisar a semiótica dessa mensagem. Isso já é ensinar para a tecnologia, porque você está ensinando para a linguagem digital. 

iFN – Quais são os principais desafios de ensinar para o contexto digital?

Henrique – O grande desafio é nos tornarmos conscientes sobre o que fazemos. Falamos muito de tecnologia, mas poucos de nós entendem como ela funciona. Não acho que todo mundo tem que aprender a programar. Precisamos aprender o que é a tecnologia.

Para isso, temos que escapar um pouco dessa lógica centralizada nos aplicativos. A gente pensa na internet e pensa em Facebook, Twitter, Instagram… Não pensamos que ela é uma conexão entre todo mundo. 

Seria importante criar espaços para que a internet volte a ser um espaço de trocas. As universidades ou as escolas públicas poderiam ser um hub de trocas livre de plataformas, onde pudéssemos aprender, trocar ideias de uma maneira menos mediada, ou com políticas regulativas claras, sobre as quais as pessoas possam opinar. Mas, por conta da falta de financiamento, essas instituições acabam tendo que recorrer às plataformas, como o Google Educacional, Amazon, Microsoft.

Outro desafio é a própria materialidade da tecnologia. Por mais que a gente não precise dos equipamentos digitais para explicar o que é a tecnologia e os princípios que organizam essa realidade digital, uma hora vamos ter que recorrer a eles para lidar com esse contexto. 

Então, é preciso que existam laboratórios, com professores que tenham formação específica na área, para ajudar alunos ou pessoas da comunidade que queiram acessar o computador ou uma internet de qualidade de maneira mais consciente.

iFN – Qual é o impacto, para os alunos, de um ensino para o contexto digital?

Henrique – O ensino com e para tecnologia pode ajudar os alunos a conseguir uma melhor qualificação. Para algumas funções, é quase inevitável saber usar tecnologia de alguma forma, seja o simples uso de um computador ou coisas mais profundas, como fazer artes, análises de relatórios, e por aí vai.

Mas eu gosto de pensar sobre essas questões com base na Sociologia do Cotidiano: como isso pode ajudar no dia a dia. Vemos alguns problemas de não ter conhecimento para a tecnologia hoje em dia. 

A desinformação, a falta de conhecimento, as consequências que isso pode gerar é algo que percebemos hoje, especialmente entre as pessoas que começaram a usar a tecnologia agora. Acredito que o maior impacto é nesse sentido, evitar que esses problemas continuem existindo.

iFN – Como esse ensino prepara os alunos para o trabalho do futuro?

Henrique – Temos que pensar no que a gente espera dos alunos quando formados. Existem dois principais cenários para o trabalho em tecnologia: o primeiro é trabalhar em uma fazenda de cliques, que são pessoas que ganham centavos por clique no Instagram, para ficar curtindo e comentando fotos, dando a impressão de que o perfil é badalado. Quem trabalha com isso sabe mexer com a tecnologia, mas tem um subemprego, algo extremamente mecânico e precarizado. 

Do outro lado, temos uma profissão que cria o aplicativo. E o que vai determinar se estamos ensinando tecnologia para que os alunos sejam clicadores ou criadores é um projeto nacional, de política pública. Vejo que falta essa compreensão no Brasil, de que poderíamos nos tornar um país referência nesse sentido. 

Estamos perdendo a oportunidade de ser uma referência em desenvolvimento tecnológico. Não está na agenda política pensar em uma concepção de melhores realidades tecnológicas para o Brasil.

Vivemos o que se chama de colonialismo de dados. Para as empresas, somos 215 milhões de pessoas para capturar os dados. Sem uma política nacional, que pensa o país como uma ponta nas high techs, eu temo acreditar que esse ensino de tecnologia possa levar o aluno a virar um clicador. Ele fala que trabalha com tecnologia, mas só está clicando, não está pensando em melhores propostas para a comunidade dele, serviços que ajudem a melhorar a cidade, ou a própria realidade educativa que vivenciou.

Eu sou favorável ao ensino com tecnologia, mas falta uma orientação nesse sentido. Esse colonialismo de dados é um fenômeno que vemos acontecer no sul global: o que chega para nós é só o produto pronto, e a gente fica só como consumidores, e não como pensadores, produtores, modificadores.

iFN – Como pensar em uma educação emancipadora em tempos digitais?

Henrique – Esse é o grande desafio, mas temos a possibilidade de fazer isso acontecer. Paulo Freire, o patrono da educação brasileira, entende que, para começar o processo de ensino e aprendizagem, primeiro é preciso ouvir a realidade do aluno para que, depois, você possa transformá-la. 

Uma saída para trazer essa emancipação digital na educação é a gente se aproximar mais dessa juventude. Mas essa escuta tem que ser muito próxima, demorada, até crítica, para realmente entendermos esse contexto. 

Em algumas escolas públicas, existem grupos de pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, que auxiliam o desenvolvimento além de sala de aula. Da mesma forma, deveria ter pelo menos uma pessoa em cada escola que compreendesse um pouco melhor o contexto digital. 

Seria ideal que, da mesma forma em que são feitos núcleos multidisciplinares, que discutem diversas questões sociais, também se discutisse a tecnologia, buscando encontrar soluções locais para aquelas comunidades específicas.

No início da pandemia, todas as escolas recorreram às ferramentas digitais mais conhecidas, porque era o que a gente já usava: salas de aula online, plataformas de tarefas, e por aí vai. No desespero de conseguir dar conta, não ia dar tempo de aprender a usar outra ferramenta. 

Agora que já estamos no presencial novamente, criar esses núcleos para pensar sobre a tecnologia poderia ser uma possibilidade de saída para essa dificuldade em ficar só com aquilo que já conhecemos. 

Precisamos compreender a realidade digital de forma mais ampla, e esse caminho que estamos tomando não ajuda a fazer isso. Ele ajuda apenas a saber usar as ferramentas, não a criar, produzir, e ter a capacidade de ser omnilateral. Precisamos encontrar soluções para alcançar essa emancipação pela educação que, também, pode ser tecnológica.

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