Thienne Czizeweski cresceu em Florianópolis (SC) e estudava em uma escola do bairro. Aos dez anos, soube que haveria uma prova de admissão para o colégio militar e pediu ao pai para participar. “Vi ali a oportunidade de estudar em um lugar onde o ensino era melhor”, conta.
Boa aluna, ela passou no teste. No primeiro dia de aula, olhou ao redor e não viu ninguém como ela. “Eu era a única menina negra na sala”, diz. Com o tempo, começou a sentir uma certa solidão. “Eu tinha amigos, mas em algum nível não me identificava com eles.”
Pode ser porque ela sentia uma necessidade de ser muito boa, mesmo tendo ganhado medalhas de honra ao mérito (dadas a quem tinha média bimestral acima de 8,5) durante
todo o período em que estudou lá. “Cresci com essa autocobrança muito grande. Eu me esforçava para ir além, sentia que precisava preencher uma lacuna. Só mais tarde entendi que esse sentimento estava relacionado ao fato de eu ser uma mulher negra.”
Quando estava no segundo ano do ensino médio, Thienne descobriu que estava grávida. “Foi uma quebra total de expectativas e um momento muito duro para mim”, relembra. “Eu tentei tanto ir para a curva do ‘eu também posso ocupar esse espaço’, mas voltei para o lugar estigmatizado onde a sociedade coloca a mulher negra, limitado a posições de cuidado e serviço e baixa qualificação. Se já era difícil antes, imagina agora.”
Quando seu filho, Francisco, nasceu, Thienne tinha acabado de completar 17 anos e estava no meio do terceiro ano do ensino médio. “Eu não fazia a mínima ideia do que era a maternidade, estava zero preparada. Foi muito importante ter estrutura e ter meus pais e minhas irmãs ao meu lado, dizendo que ia dar certo.”
Depois de um ano em casa, ela quis voltar aos estudos. “Sempre fui muito ambiciosa e não me contentava com a ideia de não ter uma perspectiva profissional. Sou muito incomodada e me questiono por que a gente precisa aceitar as coisas como elas são. Sim, eu sou mãe —e o que mais?”, diz..
Reequilibrando o jogo
Thienne fez cursinho, foi aprovada em duas universidades públicas e escolheu fazer Engenharia Química na Universidade Federal de Santa Catarina. “Sou muito comunicativa e gosto de pessoas, mas ao mesmo tempo tenho aptidão em Exatas. Escolhi uma profissão que me traria independência financeira mais rapidamente, porque era responsável por uma criança. Queria sair daquele lugar de dependência financeira e psicológica.”
A faculdade foi como um replay da escola: nada de alunos (que dirá alunas) negros ao redor. Aquela solidão do passado voltou, forte. “Ninguém ali entendia a minha realidade”, conta Thienne. Enquanto os colegas viviam o dia a dia universitário, ela conciliava os estudos com as responsabilidades da maternidade.
Quando precisou fazer a segunda chamada de uma prova à qual faltou para cuidar do filho, o professor marcou um horário aleatório, fora do período de aulas. Ao ouvi-la dizer que precisaria combinar em casa quem poderia cuidar de Francisco, o docente respondeu que o problema não era dele. “Não existia acolhimento.”
Para reequilibrar o jogo e chegar de maneira competitiva ao mercado, Thienne decidiu fazer estágios —primeiro em uma indústria de tintas, depois em uma estatal de tratamento de efluentes. Com as experiências, aprendeu o que não queria: trabalhar em ambientes rígidos, hierárquicos, que olhassem para processos sem considerar as pessoas, e onde houvesse discriminação.
“Ouvia que não seria respeitada se usasse maquiagem. Não faz o menor sentido definirem a minha competência por critérios de gênero”, afirma. Essas experiências foram a virada de chave que a levou à área de tecnologia e para o tipo de cultura com a qual queria trabalhar.
Quando estava prestes a se formar, Thienne começou a explorar possibilidades de emprego no polo de tecnologia da cidade. “É uma área onde poderia aplicar meu conhecimento em matemática e processos”, explica. Logo, começou a trabalhar em uma startup, a Geek Hunter, que na época desenvolvia um software para contratação de desenvolvedores.
Em um time pequeno, uma de suas tarefas era prospectar clientes para entender se o software funcionava, ou seja, para provar seu valor de mercado e conseguir investidores. Outra era engajar as pessoas a se cadastrar ou aceitar as vagas.
Foi então que Thienne começou a se interessar por saber o que acontecia depois que as pessoas eram contratadas. Essa curiosidade abriu caminho para ela pensar em como poderia trabalhar com processos, mas aplicados à área de gestão de pessoas. E a levou a um novo emprego, agora na área de recrutamento de outra empresa de tecnologia —só que bem maior, com cerca de 200 funcionários.
Diversidade na prática
Para ela, essa foi uma nova virada de chave para trabalhar com processos na área de seleção de pessoas e dar os primeiros passos nas ações de diversidade, um dos valores da nova empresa.
“Como nos outros empregos, percebi que estava sozinha ali também. O sistema não estava sendo inclusivo para pessoas negras e mulheres, bastava olhar quantas funcionárias havia no administrativo e quantas eram desenvolvedoras”, recorda. Foi então que ela começou a trabalhar a diversidade como estratégia, a incentivar e organizar ações como comitês, vagas afirmativas e letramento para trazer inclusão e oportunidades.
Para a engenheira, foi um momento de muito crescimento. “A Thienne que achou que a vida tinha acabado no terceiro ano estava ali trabalhando em uma multinacional super inovadora. Eu queria que esse lugar fosse acessível também para outras pessoas que, como eu, não faziam a mínima ideia de que poderiam chegar aqui, nem sonhavam com essa possibilidade.”
Três anos depois, Thienne já era reconhecida por suas iniciativas em diversidade e dava palestras sobre o tema, mas ainda queria crescer mais. “Depois que tive meu filho, parei de sonhar com as oportunidades porque precisei ser pé no chão para dar conta do dia a dia. Na pandemia, com a possibilidade de trabalho remoto, percebi que havia um potencial maior que eu poderia explorar. Nessa jornada, me descobri uma sonhadora de novo.”
Ela se pôs a procurar um novo emprego e, ao final de três processos seletivos, recebeu três propostas. Uma delas era da XP, mas bateu um frio na barriga porque ela nunca havia trabalhado no setor financeiro. Mais uma vez, Thienne quebrou as expectativas e decidiu encarar o desconhecido.
“Onde estava escrito que o mercado financeiro não era para mim? Corri o risco de dar o passo maior que a perna, mas confiei no meu potencial”, conta. “As mulheres negras carregam um valor que é dado pela sociedade: a que serve, a que não estuda, a que engravida cedo. Muita gente acredita nisso. Ser capaz de dizer a mim mesma que eu tinha condições de dar esse salto foi uma barreira desafiadora de transpor.”
Um movimento de maior alcance
Na XP, Thienne trabalha com tecnologia e gente ao mesmo tempo, na cadeira de Inteligência de Talentos —que também tem muita estatística e matemática. Seu maior desafio? “Garantir que não estamos levando nossos vieses na escolha de profissionais para as vagas”, responde.
Para dar conta do alto volume de candidatos e candidatas às vagas abertas, sua área usa inteligência artificial na seleção de talentos. “Usamos a matemática e a análise de dados em uma área que historicamente usa suas percepções para tomar a decisão de quem é a pessoa certa para a cadeira”, explica. “Todo algoritmo é testado e passa por contraprova para saber se é inclusivo ou se tem vieses que podem ser excludentes.”
“Precisamos aceitar que somos preconceituosos. Se nós treinarmos a máquina, ela também será. O algoritmo não pode ler que sou boa candidata porque estudei na federal, e sim entender qual é minha capacidade de entregar os resultados esperados”, completa.
Hoje, sua missão é garantir que pessoas como ela não sejam as únicas da sala —ou do escritório. “A diversidade estrutura tudo o que eu faço. “Não tem um processo que a gente faça que não tenha diversidade na pauta estratégica. Quero muito que seja mais fácil para quem vem depois.”
Hoje, Thienne participa de movimentos que unem mais empresas na construção de espaços com mais equidade e que convergem com sua jornada pessoal. “O crescimento da discussão da pauta ESG já move ponteiros no ‘S’, de ‘Social’, de maneira significativa nas pautas estratégicas das corporações”, conta. “Não estou mais sozinha: existe uma construção coletiva importante acontecendo e que precisa ser consistente no longo prazo.”
Recentemente, ela esteve na sede do iFood como apresentadora do evento de lançamento do Movimento Tech. A iniciativa, que tem iFood e XP como mantenedores — além de contar com a parceria do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e de mais 20 instituições e empresas, tem justamente o objetivo de capacitar jovens para trabalhar com tecnologia, oferecendo cursos gratuitos, programas de bolsas de estudo e suporte à entrada no mercado de trabalho. O programa pretende levantar R$ 100 milhões nos próximos três anos para combater o apagão tecnológico.
“Participar do Movimento Tech é reforçar a importância do pacto coletivo para quebrar ciclos históricos de falta de equidade e inclusão no mercado de trabalho. É também ter a certeza de que muitas pessoas voltarão a sonhar, assim como eu pude na minha jornada, e se descobrir capazes, competentes e preparadas para ocupar espaços que antes eram negados a elas”, completa Thienne.