Regulação do trabalho em plataformas: como os países estão criando leis

Conheça os diferentes modelos de legislação sobre o delivery por meio de aplicativos e como estão impactando a renda e a proteção social dos entregadores

Nos últimos cinco anos, o setor de delivery por aplicativos começou a ser regulado ao redor do mundo. Países e cidades passaram a aprovar legislações específicas para contemplar as novas formas de trabalho, que privilegiam a flexibilidade e a autonomia de motoristas e entregadores. 

No Brasil, esse tema ganha relevância diante do impacto econômico do setor. Segundo a Fipe, apenas o iFood movimenta 0,64% do PIB e gera mais de 1 milhão postos diretos e indiretos. Por aqui, o debate sobre regulação do trabalho em plataformas segue em aberto. 

Em agosto de 2025, foi instalada na Câmara dos Deputados a Comissão Especial que vai discutir a regulamentação do trabalho intermediado por aplicativos no Brasil. A expectativa é que até o final do ano os deputados façam audiências públicas com autoridades, acadêmicos e representantes das empresas e dos trabalhadores para a construção de um modelo nacional.

No caso dos entregadores, a tendência predominante no mundo é o reconhecimento da autonomia desses profissionais, aponta a pesquisa 6Pages. Em vez de presumir que exista um vínculo empregatício, a maior parte das novas regulações cria modelos que assegurem proteção social sem eliminar a flexibilidade e a liberdade de escolha — características valorizadas pelos trabalhadores.

A regulação do trabalho em plataforma em outros países

Quando se fala em regulação do trabalho em plataformas, alguns países se destacam, como a Espanha e o Chile. Nos Estados Unidos, as cidades e estados criaram regras próprias, como Califórnia, Nova Iorque e Seattle. E existem também países que merecem ser acompanhados, como França e Portugal.

Em geral, a regulação dos apps reduziu a flexibilidade para os trabalhadores. Em alguns mercados, como os Estados Unidos, as novas regras levaram a uma força de trabalho menor, mas com salários e produtividade maiores. A seguir, confira os principais pontos destacados pela pesquisa 6Pages.

Espanha: lei encolheu o mercado e os ganhos

O país aprovou, em 2021, a Lei Rider, que presume que há vínculo empregatício entre plataformas e entregadores. Assim, eles passaram a ter direito a proteções como salário por hora, assistência médica, seguro-desemprego, previdência e férias.

A Lei Rider também obriga as plataformas a informar aos representantes legais dos entregadores como seus algoritmos e sistemas de inteligência artificial funcionam. Isso inclui, por exemplo, decisões de contratação e demissões, incluindo a forma como os trabalhadores são perfilados.

O resultado dessa regulação dos apps foi a saída de seis plataformas do país: Deliveroo, Gorillas, Blok, Gopuff, Getir e Stuart Delivery. Com isso, houve um movimento de concentração do mercado em poucos players. 

As que ficaram tiveram prejuízo. A Glovo contratou apenas 20% da base de entregadores e ofereceu aos demais um modelo autônomo, que reduziu seus ganhos. Em 2023, a empresa teve prejuízo de € 209 milhões. 

Já a Uber Eats, que testou contratações terceirizadas, voltou ao regime autônomo – mais de 80% dos entregadores atuam de forma independente. A Just Eat, que optou por contratos formais, vem perdendo frota. Quatro em cada cinco entregadores espanhóis trabalham com Glovo ou Uber Eats, reforçando a preferência pela autonomia.

Também houve saída dos trabalhadores dos apps. Em dezembro de 2023, apenas 5.000 dos 30.000 entregadores sob demanda no país trabalhavam em plataformas digitais. Após a lei, os entregadores enfrentam jornadas mais longas, com ganhos menores. A renda caiu quase pela metade: de € 5 por entrega para uma faixa de € 2.5 a € 3. 

Chile: via intermediária trouxe estabilidade para o setor

Em 2022, o Chile aprovou a Lei 21.431. Essa regulação do trabalho em plataformas criou duas categorias: uma de “dependentes” (obedecendo às regras trabalhistas do país) e outra de “independentes” (com contrato de prestação de serviços e limite de 12 horas diárias online). 

Nos dois casos, as plataformas pagam ao menos um salário mínimo, acrescido de 20% pelas horas efetivamente trabalhadas. A maioria absoluta (80%) dos trabalhadores optou pela categoria independente, sinalizando sua preferência por flexibilidade. 

Por isso, a nova legislação teve impacto limitado sobre o modelo de negócio das plataformas atuantes no país. E o número de trabalhadores atuando por meio de aplicativos continuou crescendo após a regulação do trabalho em plataformas, sem prejuízo ao emprego formal na economia do país.

Como na Espanha, a lei obriga as plataformas a fornecer às autoridades transparência sobre o funcionamento dos algoritmos, sendo proibida qualquer discriminação. 

Depois que a regulação dos apps entrou em vigor, algumas plataformas – como a alemã JOKR e chinesa DiDi Food – deixaram o país. Outras ajustaram suas operações, limitando o tempo máximo de conexão (hora logada), por exemplo. 

No geral, o setor ganhou estabilidade após a regulação dos apps, e o mercado de delivery de alimentos cresceu. O faturamento superou US$ 800 milhões em 2023, acima dos menos de US$ 700 milhões registrados em 2021. A PedidosYa, principal plataforma do país, teve crescimento de 15% em 2023 e de 20% no primeiro semestre de 2024 – e planeja investir US$ 40 milhões em 2025. 

Já a Uber Eats evolui em número de downloads do aplicativo no final de 2024 e vem ganhando participação sobre a PedidosYa. Por isso, está expandindo seu hub tecnológico no Chile.

Estados Unidos: piso alto, menos trabalho após regulação do trabalho em plataformas

A Califórnia foi pioneira em propor uma regulação do trabalho por meio de aplicativos no país, como a Proposition 22 (ou Proposição 22), aprovada em plebiscito em 2020. Ela foi contestada judicialmente, mas considerada constitucional em 2024 pela Suprema Corte do estado.

Dessa forma, consolidou-se ali um modelo diferente: trabalhadores autônomos com benefícios limitados. A lei manteve motoristas e entregadores como contratados independentes, mas com direito a 120% do salário mínimo local pelo tempo trabalhado, 100% das gorjetas, subsídios de saúde para quem trabalha mais de 15 horas semanais e seguro contra acidentes.

Com as mudanças, as plataformas declararam que houve aumento na remuneração dos entregadores. Na DoorDash, o incremento da renda foi de 32% entre 2020 e 2023, chegando a US$ 36 por hora – 41% acima do nível pré-Proposição 22. Mas estimativas independentes sugerem que o ganho líquido dos entregadores poderia cair para US$ 13,62 por hora, pouco acima do salário mínimo estadual, que foi de US$ 16,50 em 2025.

Nova Iorque foi a primeira cidade do país a fixar uma remuneração mínima para entregadores de restaurantes por meio de aplicativos, confirmada em 2023. Depois dessa regulação dos apps, os ganhos desses profissionais aumentaram 112%, chegando a US$ 19,56 por hora em 2024, com projeção de subir para US$ 19,96 em 2025 (além de ajustes pela inflação). 

Por outro lado, eles tiveram de abrir mão da flexibilidade. Apesar de serem prestadores de serviço, no dia a dia os entregadores precisam planejar com antecedência seu turno de trabalho e são incentivados a se comprometer com uma só plataforma. Com isso, o número de contas ativas nos apps na cidade caiu 21%.

Na outra ponta, os restaurantes passaram a pagar taxas maiores. Em 2024, os estabelecimentos pagavam até 13% a mais do que antes da lei. Por isso, repassaram o aumento aos consumidores, e os pedidos caíram: em dois meses, a DoorDash relatou 850 mil entregas a menos em pequenos restaurantes, com perda de US$ 17 milhões. No mesmo ano, os clientes gastaram de 58% a 67% a mais na taxa pelo serviço do que no ano anterior.

Seguindo os passos de Nova Iorque, Seattle estabeleceu um salário mínimo para entregadores de plataformas. Segundo a lei que entrou em vigor em 2024, eles passaram a ter uma remuneração garantida de US$ 26,40 por hora, superior ao salário mínimo da cidade (US$ 19,97 por hora).

Os resultados, porém, foram negativos. Para cumprir essa determinação, as plataformas elevaram as taxas – e o custo para os consumidores subiu até 60%. O número de pedidos, consequentemente, caiu. A Uber Eats registrou queda de 45% nas entregas no 1º trimestre de 2024. As vendas dos restaurantes caíram até 60% no delivery. E muitos entregadores passaram a receber menos devido à queda do número de pedidos em pelo menos 50%.

Na cidade, o número de entregadores ativos caiu 15% em um ano – cerca de 30% dos entregadores da Uber abandonaram a plataforma.

França: oposição ao vínculo empregatício na regulação dos apps

Nos últimos oito anos, a França concedeu novos direitos aos trabalhadores de plataformas, mas sem reclassificá-los como empregados formais. Em 2016, uma lei reconheceu o direito de sindicalização e obrigou plataformas a pagar seguro contra acidentes.

Na sequência, a Lei de Mobilidade (2019) garantiu transparência sobre as entregas, direito de recusá-las e de ter flexibilidade para se conectar ou desconectar de múltiplas plataformas. E, em 2023, um acordo entre o sindicato de trabalhadores autônomos e Uber Eats e Deliveroo estabeleceu remuneração mínima de €11,75 por hora trabalhada, acima do salário mínimo (€11,27), mas sem incluir despesas ou tempo de espera.

A França, portanto, manteve os trabalhadores como autônomos e se posicionou contra a proposta da União Europeia de reclassificação automática desses profissionais como empregados. Em 2024, o texto final da União Europeia deixou a cargo dos países a definição dos critérios de presunção de vínculo empregatício.

Após a regulação dos apps, em 2024, Uber e Deliveroo seguiram em crescimento no país. A Uber Eats foi líder em downloads do app, enquanto a França impulsionou 5% do crescimento internacional da Deliveroo.

Itália: queda de braço com as centrais sindicais

A Itália adotou uma abordagem mais flexível que a Espanha, buscando uma categoria intermediária entre empregado e autônomo na regulação do trabalho em plataformas. 

A partir de 2019, as plataformas devem obrigatoriamente negociar acordos coletivos com sindicatos, além de oferecer uma remuneração mínima por hora (não apenas por entrega), adicionais por turno noturno, feriados e mau tempo, além de seguro contra acidentes.

A associação das plataformas, que inclui Deliveroo, Just Eat e Glovo, chegou a um valor de €10 por hora. Mas a negociação com as centrais sindicais foi controversa: a maior delas – a CGIL – se recusou a negociar sem reconhecer vínculo empregatício. A Just Eat, alinhada ao modelo de sua controladora Takeaway.com, abandonou a associação e passou a contratar empregados formais.

Nos anos seguintes, players menores (Gorillas, Uber Eats, Getir) saíram do país por falta de escala, enquanto Deliveroo e Glovo ampliaram participação. Mais recentemente, os reguladores intensificaram a fiscalização sobre uso de algoritmos para gestão e classificação de trabalhadores, e a Glovo foi multada em € 5 milhões em 2024 por uso indevido de dados.

Portugal: plataformas se adaptam para manter flexibilidade

A regulação do trabalho em plataformas de transporte individual no país começou em 2018, mas só em 2021 essa discussão se estendeu aos entregadores. O governo português aprovou, em 2023, uma lei que estabelece a presunção de vínculo empregatício caso fossem atendidas duas de seis condições (como a plataforma definir remuneração, controlar atividades e restringir e autonomia de entregadores). 

A lei também exigiu transparência algorítmica, ampliou proteção contra discriminação por decisões automatizadas e concedeu mais direitos a autônomos economicamente dependentes (com mais de 50% da renda de uma única plataforma).

Para assegurar autonomia aos trabalhadores, Uber Eats, Glovo e Bolt ajustaram seus modelos para oferecer mais flexibilidade e permitir, por exemplo, que eles pudessem ver informações antes de aceitar corridas.

Várias empresas saíram do mercado português: a Just Eat em 2022 e a Getir em 2023 (junto com Espanha, Itália e França), com a justificativa de focar em mercados mais lucrativos. 

O tema segue em debate: em 2024, a Ministra do Trabalho abriu espaço para revisar novamente a presunção de emprego, encaminhando a questão para o processo de diálogo social tripartite entre governo, empregadores e sindicatos na regulação do trabalho em plataformas.

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