Estudos da FGV Direito SP mostram o que está em debate nos projetos de regulamentação da gig economy
Nos últimos anos, muitos brasileiros passaram a trabalhar de uma maneira diferente. Na gig economy, as pessoas trabalham sob demanda, às vezes para mais de uma empresa, e são remuneradas de acordo com a sua atividade.
Conforme as plataformas digitais (como os aplicativos de transporte ou de entrega de refeições e compras) ganham relevância na economia brasileira, surge também a necessidade de se atualizar a legislação do país a essa nova realidade.
Muitas propostas de mudança vêm sendo avaliadas pelo Congresso: 128 projetos de lei sobre a regulamentação do trabalho em plataformas digitais foram apresentados entre 2015 e 2021, aponta uma pesquisa sobre a gig economy feita pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP).
O levantamento do CEPI mostra que, só em 2020, 71 projetos de lei foram criados — contra 23 em 2019. “É um debate recente, e as discussões estão aquecidas. Houve um grande aumento no número de projetos de lei sobre o tema por conta da pandemia”, afirma Ana Paula Camelo, líder de projeto do CEPI. “O isolamento em casa deixou em destaque o trabalho de entregadores e motoristas. Isso deu uma guinada na discussão sobre suas condições de trabalho.”
Para focar nas propostas mais recentes, o CEPI fez um recorte dos 40 projetos de lei que tratam do tema de forma pertinente e foram apresentados no Congresso ao longo de 2020 e publicou essa análise em um briefing temático realizado com apoio do iFood.
No documento, os pesquisadores mostram que algumas propostas buscavam atender a novas demandas geradas pela pandemia de Covid-19 (em saúde, higiene e afastamento do trabalho). A maioria, porém, propunha a regulamentação do trabalho em plataformas digitais de forma mais abrangente: 70% dos projetos tratavam de condições de trabalho, 70% previam benefícios sociais e 33% versavam sobre a remuneração dos trabalhadores.
As questões mais abordadas em 2020 foram saúde e segurança (presentes em 22 projetos), fornecimento de materiais para o trabalho (20 projetos) e regras sobre infortúnios, como adoecimento, danos, roubo ou perda do veículo usado para o trabalho (19 projetos).
Já os temas menos tratados foram aposentadoria (1 projeto), licença-maternidade (1 projeto) ou licenças diversas (2 projetos), indenização (2 projetos) e benefícios de saúde (3 projetos). “Os projetos de 2020 tratam de problemas relacionados à pandemia e que pediam respostas imediatas. Mas questões como a aposentadoria e a licença-maternidade terão impacto no futuro, por isso precisamos nos preparar para elas agora. Não se pode deixar temas tão sensíveis para depois”, afirma Ana Paula.
Entregadores em foco
No segundo briefing temático da série sobre o trabalho na gig economy, os pesquisadores do CEPI fizeram uma análise mais abrangente sobre 114 projetos de lei apresentados entre 2010 e 2020. Com isso, constataram que a maior parte dos projetos (49%) foi direcionado a motoristas, enquanto 24% englobavam motoristas e entregadores, 16% se referiam apenas a entregadores e 10% tratavam do trabalho por meio de aplicativos de modo geral.
Eles também identificaram três ondas: a primeira, iniciada em 2015, é a de projetos de lei sobre transporte remunerado privado de passageiros (que arrefece em 2018, com a aprovação da lei que regulamenta a atividade).
Na segunda onda (2019-2020), começam a surgir os primeiros projetos que tratam exclusivamente de entregadores ou que também abrangem essa atividade —e, ao mesmo tempo, aumenta o volume de projetos exclusivamente sobre motoristas.
A terceira onda coincide com o início da pandemia de Covid-19 e aumenta o escopo dos textos, que se referem com mais frequência a motoristas, entregadores e outros trabalhadores de aplicativo e também incluem mais temas, como acidentes de trabalho, renda, saúde e governança das plataformas.
Na terceira onda, todas as categorias são consideradas ao se pensar em direitos e benefícios sociais —os projetos da segunda onda regulavam especialmente deveres dos usuários e dos prestadores de serviço para garantir mais segurança contra violência ou buscavam reduzir o custo da atividade para motoristas.
“Existe uma diversidade muito grande de profissionais de outras áreas da economia que não estão sendo considerados nesse debate”, comenta Ana Paula. “Fica o desafio de compreender essa diversidade e dar visibilidade para os assuntos relacionados a eles e entender se há direitos que são comuns e se há necessidade de regulações específicas.”
Indefinição sobre conceitos
A análise do CEPI sobre os projetos de lei levanta um ponto de atenção: a maioria deles não traz uma definição clara do conceito de plataforma digital e dos critérios que caracterizam o vínculo de trabalho, um elemento essencial para a aplicação dos direitos que estão em debate.
“A definição do que é a gig economy é realmente um desafio. É importante entender a diversidade desse ecossistema para que a regulação esteja conectada com a realidade e ofereça segurança jurídica às empresas e aos trabalhadores”, pondera Ana Paula.
Chegamos a 2022, portanto, com uma lei cuja vigência se dará enquanto perdurar a emergência em saúde pública decorrente do coronavírus, que traz proteção aos entregadores que prestam serviços por meio de aplicativos, e com muitos projetos de lei em fase inicial de tramitação.
“Temos certamente um caminho para buscar a segurança jurídica. A nossa regulamentação deve refletir a diversidade de pessoas, perspectivas e possibilidades nas plataformas digitais”, diz Ana Paula. “Não existe um desenho único: quanto mais mapearmos as possibilidades, melhores combinações poderão ser feitas para chegar a um equilíbrio saudável de direitos.”
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