Em um ano, tribunais do Reino Unido tomam duas decisões sobre profissionais da gig economy
Qual é o vínculo de trabalho que existe entre profissionais e as plataformas digitais onde prestam seus serviços? Em 2021, essa questão agitou os tribunais no Reino Unido, que ao longo do ano julgaram dois casos sobre o status de quem atua na gig economy com transporte de passageiros e delivery.
Em fevereiro daquele ano, a Suprema Corte do Reino Unido julgou uma ação individual de dois motoristas da Uber que buscavam o reconhecimento de que existia um contrato de trabalho entre eles e a empresa.
O caso passou por várias instâncias, e a decisão final reconheceu os dois profissionais como workers, uma categoria intermediária que fica entre os autônomos e os empregados —e não tem paralelo no Brasil. Ao serem considerados workers, e não “contratantes independentes” (como os profissionais autônomos), os dois motoristas ganharam alguns direitos trabalhistas, como a fixação de um salário mínimo, direito ao recolhimento de contribuição previdenciária e férias proporcionais.
“Nessa decisão, houve o reconhecimento de uma relação de trabalho entre os dois profissionais e a Uber, mas não o de um vínculo de emprego. Existe uma diferença entre direitos empregatícios e direitos trabalhistas, que são mais amplos”, comenta Ana Carolina Silveira, pesquisadora da FGV Direito SP, que participou da elaboração de um briefing temático sobre o assunto, que teve apoio do iFood.
Ela explica que essa decisão reconhece a existência de um contrato de trabalho, e não de um contrato civil ou comercial. Por outro lado, os workers não são empregados, portanto não têm os mesmos direitos destes, como auxílio-doença, licença maternidade ou paternidade, aviso prévio em caso de dispensa ou direito à representação sindical, aponta o briefing.
Além de classificar os trabalhadores como workers, a decisão da Suprema Corte britânica entendeu que o período de duração de trabalho, considerado para o cálculo das verbas trabalhistas, é o tempo que o profissional permanece logado na plataforma.
“Isso só foi aplicado aos reclamantes, já que se tratava de uma ação com efeitos individuais. Em sua política, a Uber manteve a posição de calcular a remuneração com base no tempo entre o início e a finalização das viagens, mas tornou mais flexível o aceite e a recusa pelos motoristas, possivelmente para se precaver de outras demandas judiciais futuras”, explica Ana. “Como é um trabalho multiplataformas, é comum que as empresas afirmem que não têm controle sobre o tempo ativo dos trabalhadores, que podem estar logados em uma plataforma enquanto prestam serviços para outras. O desafio regulatório é chegar a uma equação que considere também o tempo de espera dos trabalhadores entre as solicitações de serviço.”
Depois da decisão, a Uber alterou sua política: fixou um salário mínimo por hora para os workers e passou a pagar férias proporcionais e a recolher a cota previdenciária. “A plataforma manteve a oferta de seguro contra doença e acidente e de licença maternidade e paternidade, que eles já ofereciam antes dessa decisão, mas apenas para motoristas e no Reino Unido”, completa a especialista.
Entregadores são considerados autônomos
Outra decisão relevante sobre o trabalho na gig economy no Reino Unido diz respeito aos profissionais que fazem entregas. Em junho, a plataforma de delivery Deliveroo obteve uma vitória nos tribunais, que consideraram que seus trabalhadores são autônomos.
Nesse caso, trata-se de uma ação coletiva movida pelo Sindicato de Trabalhadores Independentes da Grã-Bretanha, que buscava o reconhecimento de um vínculo empregatício (e não trabalhista, como no caso da Uber) entre os profissionais e a empresa.
Na primeira decisão, em 2017, o Comitê Central Arbitral do Reino Unido negou o pedido de reconhecimento desse vínculo. Isso porque um dos critérios para se enquadrar na categoria de empregado é a pessoalidade, ou seja, o trabalhador não pode ser substituído por outro na execução do trabalho.
Como a Deliveroo prevê no contrato com os profissionais que os entregadores podem enviar um substituto para realizar um pedido de entrega, eles só podem ser considerados na categoria de autônomos. Em outras duas ocasiões, o Tribunal Superior manteve a decisão do Comitê Arbitral. Na mais recente decisão, em junho de 2021, a Corte de Apelações fez o mesmo.
Leitura rápida: o que diz a Justiça britânica
Sobre motoristas da Uber
A Suprema Corte decidiu que o contrato que foi firmado entre os dois motoristas que entraram com ação individual é um contrato de trabalho, e não um contrato comercial. Os magistrados definiram que eles se enquadram na categoria worker, ou seja, têm direitos trabalhistas (como salário mínimo e contribuição previdenciária), mas não os mesmos direitos empregatícios da categoria empregados (como aviso prévio e auxílio).
Sobre entregadores da Deliveroo
Nas quatro decisões tomadas pela Justiça entre 2017 e 2021 após ação coletiva do Sindicato de Trabalhadores Independentes da Grã-Bretanha, os tribunais reafirmam que os entregadores que trabalham para a plataforma são autônomos, e não empregados, pois seu contrato permite que eles enviem um substituto para fazer a entrega. Pela lei britânica, para ser considerado empregado, o trabalhador não pode ser substituído por outro ao fazer seu trabalho.
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